Dentro das celas, mais de 20 detentos dividiam, 22 horas por dia, um espaço projetado para oito pessoas na penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Do outro lado, policiais penais convivem com a tensão de uma unidade que mais parece uma panela de pressão prestes a explodir. “Esbarramos no risco de abrir as grades de um lugar assim, com um estresse extremo de ambas as partes”, contou Fernando* sobre a sensação a cada novo plantão. Só nos últimos quatro anos, o agente já enfrentou três rebeliões e diversos motins causados pela superlotação. E até já viu de perto tentativas de assassinato contra dois colegas.
“O preso está sob a tutela do Estado, que tem que fornecer alimentação, atendimento médico, auxílio psicológico e assistência social. Mas faltam pessoal e mão de obra. O detento vai arrumar uma forma de manifestar sua insatisfação”, resumiu. Para retratar as péssimas condições de trabalho da categoria, pesquisadores de doutorado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) visitaram, por quatro anos, 13 unidades prisionais do Estado. Além da Nelson Hungria, os estudiosos passaram por penitenciárias em Ribeirão das Neves, São Joaquim de Bicas, Belo Horizonte, Formiga, Juiz de Fora e Muriaé.
Intitulada ‘Do corpo disciplinar ao corpo real: o trabalho dos agentes de segurança penitenciária’, a pesquisa surgiu após um pedido do Ministério Público ao Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos da UFMG e se tornou tese de doutorado da psicóloga Marcela Sobreira. Entre os principais problemas encontrados, estavam condições precárias das unidades, escalas de trabalho excessivas por conta do déficit de profissionais e constantes afastamentos por problemas de saúde, e superlotação.
Para a psicóloga, foi uma experiência difícil. “É um ambiente muito autoritário, austero e desconfortável. Toda visita que fazíamos era extremamente exaustiva, tanto é que os dias de pesquisa de campo eu normalmente cancelava a minha agenda para outros compromissos. Ia na parte da manhã e voltava após o almoço, e eu não tinha energia para fazer nenhuma outra atividade mais ao longo do dia”, descreveu.
Na teoria, o tempo dos plantões varia de 12 a 24 horas, mas Marcela encontrou policiais penais que não dormiam havia três dias. Isso acontecia por conta da falta de colegas: os presentes eram praticamente obrigados pela direção a cobrir os faltosos.
E a pior situação, segundo a pesquisadora, era dos agentes contratados – uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) tornou inconstitucional a prorrogação dos contratos, o que tem reduzido drasticamente a quantidade desses profissionais entre os mais de 16.000 policiais penais do estado. “Temos registros de trabalhadores que ficam na guarita no tempo. Se está chovendo ou com sol, ele fica exposto. As condições sanitárias também são muito ruins e isso se reproduz por todos os lados. E os contratados estão em uma condição ainda mais instável”, acrescentou.
Precariedade compartilhada
A especialista cita o desgaste emocional dos agentes diante da função de vigiar e punir e da tensão do sistema. Muitas vezes sem conseguir manter a disciplina, alguns policiais penais partem para a agressão física, lembra Marcela. “Quando um preso entra na penitenciária, vai ser categorizado, usar uniforme, passa a ser chamado por um número e perde qualquer possibilidade de subjetividade, o que gera uma reação. O agente vai ser a pessoa que exercerá isso, de destituir a individualidade e a singularidade, mas a organização do trabalho já começa a fazer com que essa função fique difícil. As mesmas condições precárias que os presos compartilham entre si, os agentes também compartilham”, disse.
Além disso, Marcela Sobreira pontuou que os policiais penais também são sempre alvo de desconfiança, assim como os detentos. “Toda vez que ele entra na unidade prisional é revistado. Não atoa, ainda mais um contexto como esse. Mas isso faz com que o profissional acabe, concreta e subjetivamente, ocupando o mesmo lugar do preso. Pode também ser punido, é vigiado da mesma forma pelas autoridades locais. A responsabilização por algo sempre recai na pessoa física, nunca na instituição como um todo”, afirmou. A pesquisadora alegou ainda que, muitas vezes, o agente acaba esbarrando em presos que fizeram parte da sua trajetória pessoal. “Pessoas que eu entrevistei acabaram encontrando detentos que eram amigos de infância, um irmão ou parente que está na mesma unidade, o que dificulta ainda mais o trabalho”, enfatizou.
“A prisão é um fracasso e ela foi feita para dar errado. Secretamente, é isso mesmo que ela quer, não funcionar em termos de reinserção das pessoas na sociedade. Na área da psicanálise, chamaríamos de um lugar pulsão de morte, mortífero. Às vezes uma morte concreta, e por vezes essa morte subjetiva”, considera Marcela.
‘Acontece muito de em um plantão ter pouquíssimos agentes’
Unidade que já foi considerada de segurança máxima em Minas Gerais, a penitenciária Nelson Hungria tem pouco mais de 1.600 vagas, mas abriga 2.400 detentos, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em um cenário de superlotação, o policial penal Fernando disse que o número de profissionais que atua na unidade é insuficiente. “Ao todo, são 400. Parece ser um número grande, mas é preciso dividir por quatro, já que há escalas de trabalho. Então, cada equipe tem 100 pessoas e a quantidade de presos não muda. Fora os afastamentos, as faltas, férias, atestado. Acontece muito de ter plantão com pouquíssimos agentes”, contou.
Conforme o agente, já houve diversas ocasiões com pouco mais de 40 profissionais em um turno de trabalho, principalmente no período noturno. “É isso que falta explicar para a sociedade, só falam no número grosso, mas há diversos fatores. Quando acontecem essas defasagens, os presos até ficam sabendo antes mesmo de nós. E eles podem tentar uma fuga, motim, rebelião, o que deixa o trabalho ainda mais tenso”, alegou. E as fugas são constantes na penitenciária: só no ano passado, quatro pessoas conseguiram sair da unidade prisional, e pouco depois foi encontrado um túnel cavado pelos detentos. Neste ano, um outro homem também conseguiu fugir. Fernando alegou ainda que os problemas psicológicos são comuns entre a categoria, o que leva aos afastamentos.
“O preso tem toda uma assistência, pelo menos um profissional para atender ele, mas se vai ter um policial penal para poder encaminhar é outra história. O servidor tem que entrar em uma fila do Ipsemg (Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais), tentar marcar uma consulta psiquiátrica com cinco meses de antecedência e muitas vezes não consegue, tem cancelamentos. Ficamos doentes e não conseguimos atendimentos”, reclamou. O policial penal alegou ainda que a tensão também é constante até na família. “Uma vez pediram para eu levar um celular para um preso, só que eu neguei. A pessoa sabia a região em que eu morava e contou para todo o pavilhão com 180 detentos. Foi muito difícil”, alegou.
Além disso, Fernando garantiu que a presença de grandes organizações criminosas está cada vez mais forte nas unidades prisionais do estado, o que deixa os agentes ainda mais apreensivos. “O estado omite isso, evita de falar, mas eles ganham cada vez mais espaço, principalmente essa facção de São Paulo, que está engolindo a criminalidade”. E até surto de ratos e falta de água e energia elétrica se tornou uma realidade no espaço. “O muro está desabando, é uma sucessão de falhas e o governo não age”.
Déficit de profissionais chega a 4.000, estima sindicato
Com a proibição dos contratos de profissionais que atuam nos presídios serem renovados, o diretor de comunicação do Sindicato dos Policiais Penais do Estado de Minas Gerais (Sindppen-MG), Alexandre Magno Soares, estima que mais de 4.000 profissionais já deixaram as unidades ou estão prestes a encerrar o vínculo nos próximos meses. “Tem um concurso em aberto com 2.400 vagas, mas o cronograma vai até dezembro do ano que vem, depois tem o curso de formação. Só devem começar a trabalhar em 2023, e mesmo assim não suprem o déficit. O número fica cada vez menor e a preocupação de quem trabalha lá aumenta”, declarou.
O dirigente, que atua no presídio José Martinho Drumond, em Ribeirão das Neves, na região metropolitana, reforçou também a insalubridade no ambiente de trabalho. “Você coloca um preso acometido por uma doença, como a tuberculose, e até descobrir que ele está infectado por uma enfermidade grave já contaminou outras pessoas na cela. As unidades prisionais são verdadeiros barris de pólvora”, alegou.
Aliado a isso, ainda há o problema com a alimentação, que é precária. “A mesma comida que o preso come nós também comemos. O preso também deve ter uma alimentação decente, mas o policial penal gasta muito mais energia no seu trabalho comparado a ele, que fica dentro de uma cela 22 horas por dia”.
*Nome fictício
Matéria Jornal o Tempo - Por LUCAS MORAIS 18/10/21 - 03h00 https://www.otempo.com.br/cidades/policiais-penais-de-minas-gerais-enfrentam-ambiente-mortifero-1.2555167?utm_source=whatsapp